"É incrível ver o chip do iPhone a ser o motor do Mac". Como Tim Cook quer "salvar vidas"

Tim Cook 'abriu o livro' no evento VivaTech, que o Dinheiro Vivo acompanhou, revelando mais pormenores do que o habitual sobre a Apple. Os regulamentos europeus, os novos impostos e os produtos na calha da empresa mais valiosa do mundo. "Se não estamos a falhar em algo, não estamos a tentar coisas suficientes."
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Foi a cabeça de cartaz do evento francês rival da Web Summit, VivaTech (ele e Mark Zuckerberg), participou em modo remoto a semana passada e acabou por partilhar algumas novidades da missão global da empresa mais valiosa do mundo, a Apple.

Tim Cook, o seu CEO, citou Steve Jobs para falar da missão pela privacidade e segurança dos utilizadores desde a fundação da empresa e depois falou em impostos, regulação, clima e sustentabilidade, falhanços, desinformação, jovens e produtos novos (sem revelar segredos, como é timbre da Apple).

E se é certo que Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, passou boa parte do tempo da sua conferência, na quinta-feira, a falar de óculos de realidade aumentada e virtual, Tim Cook não se coibiu de comentar alguns dos temas mais relevantes dos tempos atuais para a empresa, mesmo que não tenha abordado diretamente o caso em tribunal com a Epic Games (onde a App Store é contestada por ser um "jardim fechado").

Cook começou por destacar os esforços da empresa "em ser uma força positiva" mesmo durante a pandemia, em que ajudaram com máscaras, ventiladores e a doar dinheiro para vacinas em África". Destacou ainda a missão da empresa e do já famoso ecossistema (mais fechado do que aberto): "nós fazemos coisas, não estamos nem vamos estar no negócio das redes sociais, por exemplo, juntamos sim hardware, software e serviços e queremos que tudo funcione bem entre si, na sua intersecção, não queremos se a empresa que faz mais coisas, mas sim a que faz as melhores coisas, algo bem diferente do que se vê noutras empresas".

Depois partiu para algumas das mudanças recentes para os seus dispositivos para limitar os dados recolhidos pelas apps, cumprindo a missão determinada há mais de uma década (Jobs morreu em 2011) pelo icónico cofundador da Apple, Steve Jobs sobre privacidade, que diz ser "um direito humano fundamental". "O Steve dizia sempre que a privacidade é permitir em linguagem simples e acessível e, se for necessário, várias vezes, que todos possam aprovar o que querem ceder", indica.

Apesar disto, Tim Cook lembra que "há uma preocupação cada vez maior legítima os utilizadores sobre quem os está a observar e admite que esse receio pode ser prejudicial "para uma expressão livre online". "Ninguém quer um mundo onde a liberdade de expressão é reduzida por receio que um governo ou uma empresa nos esteja a ouvir mesmo nas conversas mais pessoais", explica, dando destaque objetivo da Apple de ter todas as comunicações encriptadas, do iMessage ao FaceTime (que vai passar a poder ser usado em Android e Windows pelo navegador) - um serviço que foi precursor nas videoconferências mas se tem mantido fechado no ecossistema da Apple, até agora.

A participação da Apple nesta conferência - é a primeira vez para Cook - é também uma novidade relevante e que faz parte no que se nota ser uma estratégia de maior abertura pouco comum em que os recentes ataques do Facebook (pela questão das mudanças no iOS 14.5 para maior privacidade) e da Epic (com o caso em tribunal contra práticas e comissões da App Store). Daí que existam cada vez mais presenças de responsáveis da Apple nos media - Craig Federighi, vice-presidente de software tem-se desdobrado em entrevistas ainda recentemente, sobre as novidades de software apresentado no evento para programadores da semana passada, WWDC.

Citaçãocitacao"No passado não tínhamos sequer ideia que o chip do iPhone se poderia tornar no coração do iPad e do Mac, mas continuamos a descobrir novas áreas e tecnologias e a puxar sempre o cordel e isso só é possível porque mantivemos a mente aberta".centro

Sem surpresa, Tim Cook não quis revelar os produtos que a Apple está a desenvolver neste momento. Desafiado a imaginar o iPhone 30, num futuro mais longínquo, o gestor brincou: "será melhor que o iPhone 12 e vai resolver mais problemas".

O objetivo para os próximos anos será nesse tom, "de fazer os melhores produtos que enriquecem as vidas das pessoas, não lançamos um produto que não cumpra isto". Embora admita estar entusiasmado "com muitas das coisas" que estão a ser preparadas, "não podemos prever o futuro e é impossível saber que desenvolvimentos vamos ter em 20 ou 30 anos, temos de ser humildes". Apesar disso acredita "no poder da tecnologia para ajudar as pessoas".

Os óculos de realidade aumentada (RA) que a Apple está a desenvolver são uma das maiores promessas e Cook admite um produto Apple nessa área que "é verdadeiramente entusiasmante". "Vamos ver se vamos teremos ou não um produto, só vamos lançar se enriquecer a vida das pessoas", admite, repetindo esse mantra da empresa algumas vezes.

Cook dá ainda o exemplo dos chips feitos pela própria Apple nos Macs, que levou a empresa a deixar de usar a Intel. "No passado não tínhamos sequer ideia que o chip do iPhone se poderia tornar no coração do iPad e do Mac, mas continuamos a descobrir novas áreas e tecnologias e a puxar sempre o cordel e isso só é possível porque mantivemos a mente aberta".

Além da inteligência artificial como um todo, "que nos vai facilitar cada vez mais a vida em várias áreas e dar-nos tempo para outras tarefas", Cook fala de outra área de foco relevante para a Apple: a saúde. "Esta interseção entre tecnologia e saúde é entusiasmante, com o Apple Watch [o smartwatch] começámos a ajudar no bem estar (tempo sentado, respiração, atividade), mas depois percebemos a utilidade para a saúde de cada um". Foi aí que entrou o eletrocardiograma e a medição dos níveis de oxigénio no sangue, que o CEO diz que "já estão a ajudar a salvar vidas" e lembra que recebe centenas de emails com "relatos espantosos".

Apesar de não se querer comprometer com produtos ou funcionalidades de wearables (como o Apple Watch) em concreto, Tim Cook tem uma visão clara do que quer para a Apple na área da saúde: "A capacidade de se monitorizar continuamente o corpo humana de forma segura e privada, como acontece com um carro com luzes de aviso sempre que há um problema é uma ideia que tem um longo caminho pela frente".

A metáfora permite a Cook explicar que ter um aviso que se aproxima um ataque cardíaco ou que os níveis de oxigénio no sangue estão em baixo pode fazer a diferença "entre viver e morrer". A ideia é que, "da forma mais segura possível e imediata", "se quisermos podemos partilhar de forma direta informação vital sobre o nosso corpo e o seu funcionamento ao nosso médico", isto mesmo sem ir ao hospital. Pode, assim, haver uma revolução nos diagnósticos antecipados.

Já sobre a possibilidade de haver um carro da Apple, Tim Cook riu-se e disse apenas: "tenho de manter alguns segredos, temos de ter coisas na manga por isso não vou comentar esse rumor".

Citaçãocitacao"Se não estamos a falhar em algo, não estamos a tentar coisas suficientes, isso não quer dizer que vamos colocar produtos falhados nas mãos dos clientes"centro

O líder da Apple falou ainda na necessidade de estar disposto a falhar para inovar. "Também falhamos, claro, eu próprio também falho, mas tentamos é que as falhas fiquem dentro da Apple e não incluam os clientes".

Cook explica depois alguns dos processos que tornaram a Apple, sob a liderança de Steve Jobs, conhecida pela qualidade. "É para não levar falhas para os clientes que desenvolvemos coisas que, subitamente, não lançamos no mercado (às vezes produtos prontos para serem lançados que nunca chegam a ver a luz do dia) e também começamos produtos que deixamos para trás por pormenores que descobrimos no processo que achamos que não estão à altura dos nosso critérios".

Certo é que não há empresas perfeitas: "falhar faz parte da vida, seja uma empresa nova ou velha e se não estamos a falhar em algo, não estamos a tentar coisas suficientes, isso não quer dizer que vamos colocar produtos falhados nas mãos dos clientes".

(A conversa completa em vídeo no evento VivaTech, realizado em Paris a semana passada)

Tim Cook foi desafiado a analisar os regulamentos vindos da Europa para regular a privacidade e a segurança online, onde o RGPD (Regulamento Geral de Protecção de Dados) tem sido peça charneira. "O RGPD foi importante e acabou por ser utilizado em todo o mundo, mas queremos que vá mais longe no que diz respeito à privacidade porque ainda há muito por fazer nessa área", explica o CEO da Apple, que não se coíbe de dizer que "há algumas ideias que prejudicam o utilizador".

E quais são? É precisamente aí que Cook acaba por falar de forma indireta no famoso caso que opõe a Epic dona do jogo Fortnite) à Apple, onde a primeira acusa a App Store da Apple de práticas anti-concorrenciais por não permitir pagamentos dentro das apps pelo sistema da empresa (cobrando respectiva comissão de 15% a 30%) e por não permitir a utilização de outras lojas de apps no iPhone.

Diz Cook, que a linguagem atual do Digital Services e Markets Act - a regulação que a Comissão Europeia quer implementar em breve no mundo online: "se avançar como está irá forçar o chamado side loading no iPhone, uma forma alternativa de ter apps externas no iPhone que irá destruir a proteção que damos em privacidade, transparência na monitorização que as apps fazem e segurança global do nosso ecossistema".

Embora admita que "boa parte desse projeto de regulamentação" criado por Margrethe Vestager seja correto e faça sentido, "nesta parte em particular é uma área onde temos a responsabilidade de dizer que não é do melhor interesse do utilizador".

Como argumento principal fala no rival bem mais dominante em smartphones a nível europeu e mundial, Android: "vemos que em Android existe mais 47% de malware do que em iOS e sabemos porque é isso acontece, porque desenhámos um sistema operativo para ter apenas uma App Store em que todas as apps são revistas quando entram". "Isso permite tirar muito do risco problemático a que estes aparelhos estão sujeitos em segurança e privacidade e felizmente temos tido o feedback dos utilizadores a mostrar que valorizam este formato". Cook não se coíbe de dizer que o que motiva a Apple nesta questão "não são motivos financeiros" e adiantar "que há risco real de segurança sem as proteções que existem".

De fora dos comentários ficaram mais detalhes sobre os processos judiciais na Europa e nos EUA sobre alegadas práticas monopolistas da empresa, nomeadamente na App Store.

Sobre os novos impostos corporativos previstos - ainda recentemente o G7 aprovou a proposta dos EUA de um mínimo de 15% de impostos às empresas -, Tim Cook garante que a Apple vê com bons olhos uma maior distribuição de impostos a nível mundial, mesmo que isso implique à empresa pagar mais do que paga atualmente.

Ainda assim, o CEO diz que na generalidade a Apple já paga 23% de impostos sobre as suas vendas, "só que como o maior desenvolvimento dos produtos é feito nos EUA, é lá que pagamos a maioria dos impostos e é aí que tem havido mais contencioso, como dividimos esse valor". O trabalho da OCDE para criar consenso nessa divisão para Cook "será boa para todos porque vai permitir uma maior partilha a nível mundial e esperemos que haja acordo em breve".

"Acreditamos que os impostos são essenciais para dar serviços fundamentais aos cidadãos de todo o mundo e queremos pagar nossa parte justa", diz o gestor, que ainda assim pode ver a Apple perder parte dos lucros com um potencial aumento das taxas praticadas na Europa - tem a sua sede na Irlanda, por conseguir por lá pagar bem menos impostos.

Já sobre o chamado lado negro da tecnologia, que tem tido destaque em plena pandemia com cada vez mais desinformação a ganhar projeção online, Tim Cook garante que "a tecnologia sozinha não quer ser boa ou má, é neutra, se é boa ou má depende do inventor e da sua criatividade, paixão e cuidado", algo que diz ser fulcral ter nesta área transformadora".

"Temos sofrido com a expansão vasta de desinformação, afetou de forma direta a capacidade de vacinar pessoas nos EUA", admite. No entanto, não há solução óbvia: "precisamos de pensar nisto muito a sério, mas acho que ninguém ainda percebeu como resolver, precisamos é de mais debate e abertura real das plataformas sociais para se tomarem medidas".

Já sobre a juventude atual, Cook contrariou a noção de que sejam uma geração perdida. "Os jovens com que falo e que conheço têm valores importantes, inclusive um amor pelo planeta e pelos direitos humanos para todos que é importante", admite. Deixa ainda um exemplo: "vejo-os escolher formas interessantes de luta, como o projeto europeu Too Good To Go, que conheci há uns anos e que lida com o problema essencial do desperdício alimentar, aproveitando o que os restaurantes atiravam fora para alimentar pessoas".

Destaca também outro projeto de San Diego, o software de aulas virtuais Classy, "que colocou pais e estudantes a terem aulas virtuais convincentes"."Os jovens vão estar na raiz das soluções para os novos problemas e é assim que tem de ser", admite.

Sobre as questões de sustentabilidade, Cook também puxou por alguns galões da Apple, corrigindo o moderador ao indicar que a Apple não vai ser neutra nas emissões de carbono até 2030, mas já o é "há dois anos". A ideia para 2030 "é alargar essa política às cadeias de distribuição e de ligação ao cliente, algo bem mais agressivo do que o objetivo mundial previsto até 2050". "Já temos energia renovável a alimentar em 100% a Apple e os nossos fornecedores estão nesse caminho com a nossa ajuda, mais de uma centena já assinaram acordos para usar energia renovável", adiantou.

Outro objetivo concreto é que a empresa mais valiosa do mundo "não quer remover nada da Terra para fazer os novos iPhone": "ainda não chegámos lá, mas 40% do alumínio nos Mac já é reciclado, tal como 98% das terras raras usados nos iPhone". Para isso a Apple tem investido em reciclar os iPhone antigos. "Um bom produto para o utilizador e para o planeta pode ser a mesma coisa e é esse o objetivo que colocamos para nós mesmos", conclui.

Com um discurso trabalhado e coerente (que foge aos temas mais polémicos) e que tem ajudado a manter a Apple como a empresa mais valiosa do mundo, Tim Cook tem-se distinguido como dos poucos CEO de tecnológicos que, não sendo fundador, tem levado a empresa para novos píncaros - financeiros e não só.

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