A 7 de Junho de 2021 terminou o prazo de implementação da Directiva Mercado Único Digital (UE) 2019/790 (DMU), data em que apenas 3 Estados Membros (EM) a tinham transposto integralmente e razão pela qual a Comissão Europeia abriu (a 26 de Julho) procedimentos de infracção contra 23 EM, incluindo Portugal. O atraso na implementação tem sido imputado à natureza controversa da DMU, ao tardio fornecimento pela Comissão do guia para transposição do polémico artigo 17 e à pendência, no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de um processo que visava a eliminação dessa norma. Dia 26 de Abril deste ano todos estes elementos ficaram finalmente disponíveis, permitindo apurar o rumo preciso a seguir pela República Portuguesa para boa implementação da DMU.
Antes de mais, lembremos que o artigo 17 estabelece que certos "prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha" (grandes plataformas da Internet, como a Facebook e a YouTube) devem tentar obter autorização para garantir o uso lícito de conteúdos protegidos pelo direito de autor nos seus sistemas. Na ausência de autorização, apesar dos seus "melhores esforços", devem assegurar a indisponibilidade de conteúdos protegidos específicos. E se, apesar dos seus "melhores esforços", surgirem conteúdos ilícitos nos seus serviços, cabe às ditas plataformas remover ou impedir o acesso a esses conteúdos.
Dadas as dificuldades sentidas em torno da interpretação do artigo 17, a Comissão emitiu orientações que visam apoiar a "transposição correcta e coerente" do artigo 17 em todos os EM e que não sendo juridicamente vinculativas são cruciais para qualquer EM que queira implementar a DMU devidamente.
Com efeito, o documento da Comissão clarifica conceitos que ficaram por explicar - designadamente "prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha" efectivamente abrangidos pelo artigo 17, modelos de autorização, mecanismo de responsabilidade na ausência de autorização, "melhores esforços" para obter autorização e para assegurar a indisponibilidade de conteúdos protegidos específicos, notificação e retirada de conteúdos, notificação e bloqueio de conteúdos, regime de responsabilidade específico para novas empresas online que estejam em actividade na UE há menos de 3 anos, salvaguardas para utilizações legítimas de conteúdos, mecanismos de recurso para os utilizadores e transparência por parte dos "prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha".
Explica a Comissão, por exemplo, que:
- No que toca à delimitação da definição de "prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha", esta deve seguir a DMU, não havendo margem para os EM alargarem ou reduzirem o seu âmbito de aplicação;
- O conceito de "melhores esforços" é um conceito autónomo do direito da UE devendo ser transposto pelos EM de acordo com as orientações da Comissão;
- Para não afectar usos legítimos pelos utilizadores, o bloqueio automático (ou seja, o acto de impedir o carregamento por meios tecnológicos) deve, em princípio, limitar-se a carregamentos manifestamente ilícitos;
- O artigo 17 não introduz um novo direito prevendo, sim, um regime específico que os EM têm de aplicar - isto é, os EM que implementaram a Directiva sem o artigo 17 têm mesmo de o transpor.
A 26 de Abril deste ano emergiu uma crucial decisão do TJUE no processo que opôs a República da Polónia contra o Parlamento Europeu e Conselho da UE (C-401/194), no qual esse EM requeria a anulação parcial ou total do artigo 17 DMU, alegando que a filtragem automática de conteúdos não é compatível com a liberdade de expressão e de informação dos utilizadores (previsto no artigo 11 da Carta dos Direitos Fundamentais).
O Tribunal do Luxemburgo concluiu que o justo equilíbrio entre direitos é assegurado desde que as ferramentas de filtragem automática não bloqueiam conteúdos lícitos. Significa isto, em sede de transposição do artigo 17 DMU para o seu direito interno, que os EM que já transpuseram a DMU e estipularam um mecanismo de bloqueio automático terão de rever esse preceito e que os EM que ainda não implementaram a DMU (ou o fizeram sem transpor o artigo 17) devem prever um mecanismo jurídico que proíba o bloqueio automático indiscriminado de conteúdos.
A 28 de Setembro de 2021 foi apresentada pelo Governo uma Proposta de Lei (114/XIV/3ª) que replicava, em geral, a redacção da directiva. O legislador português disse, então, ter optado por essa metodologia de implementação por se encontrar pendente no TJUE o processo polaco que poderia, no limite, determinar a revogação do artigo 17.
Tendo o Tribunal do Luxemburgo concluído que o dispositivo legal em causa não é inválido, deve o legislador nacional optar agora por metodologia diversa. Importa revisitar a proposta, trabalhando os conceitos que ficaram por clarificar na proposta de lei anterior, com base na minuciosa orientação fornecida pela Comissão, prevendo um mecanismo jurídico que proíba o bloqueio indiscriminado de conteúdos e garantindo, ainda, discussão prévia com as entidades de gestão colectiva e outras (que não teve lugar da última vez).
As peças deste complexo puzzle estão finalmente disponíveis, não havendo motivo para que a DMU não seja alvo de uma implementação primorosa.
(Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.)
Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria (www.gpi-ipo.com)