No mês em que a startup de cigarros electrónicos Juul chegou a Portugal, Outubro de 2019, o escrutínio dos reguladores já tinha começado a afectar o seu valor e as vendas dos dispositivos de "vaping" estavam a abrandar. Aquilo que tinha começado como uma promissora startup de Silicon Valley que ia ajudar os fumadores a deixarem de fumar tornara-se num unicórnio inflacionado e mal cheiroso.
Esse foi um dos sinais mais fortes de que a missão inicial da Juul estava a desfazer-se, literalmente, em fumo. Fundada por James Monsees e Adam Bowen em 2017, a startup pretendia criar um aparelho electrónico para fumadores que não produzia fumo e dispensava nicotina sem os milhares de químicos nocivos dos cigarros normais. Eventualmente, a utilização do "vaper" devia ajudar os fumadores a deixarem de fumar.
Mas não foi nada disso que aconteceu. Ao invés de ajudar gerações de fumadores a deixar o mau hábito, a Juul viciou uma geração completamente nova: adolescentes e jovens adultos, que aderiram em massa aos elegantes vaporizadores disponíveis para venda em lojas de conveniência e que acreditavam não ter efeitos secundários para a saúde. Imaginem isto, poder fumar sem consequência, obtendo o mesmo prazer que um fumador tradicional sem a ameaça de destruição corporal que se vê plasmada nos maços de tabaco.
Os sabores apelativos, como maçã, mentol e algodão doce, ajudaram a criar essa imagem de que se tratava de um produto inofensivo.
A máquina por detrás da Juul, cega com os números explosivos de vendas, ignorou os alertas vermelhos que lhe chegavam. Expandiu-se de forma desenfreada para o mercado internacional, o que explica a chegada a Portugal em tão pouco tempo, e aceitou o mega investimento da mesma indústria tabaqueira que inicialmente queria combater.
A Juul foi abalroada pelo sucesso vulcânico que obteve logo de rajada, chegando a dominar 75% do mercado de cigarros electrónicos em 2018. Perdeu de vista o seu objectivo, contornou os sinais de alarme e só não seguiu em frente porque a realidade se estampou nos seus planos.
Ao contrário de startups que mexem com redes sociais, vídeo, digitalização e outros meios intangíveis, os efeitos dos produtos da Juul na saúde dos seus utilizadores e nas estatísticas das autoridades foram imediatos. Ao mesmo tempo que surgiam relatos de utilizadores com problemas respiratórios e infecções pulmonares relacionadas com o vaping, o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) publicou um relatório esmagador mostrando que em apenas um ano a utilização de tabaco por adolescentes disparou 38,3%. Esta subida, que contrariava a tendência de anos anteriores, deveu-se em larga escala à popularidade da Juul nas escolas secundárias. E a maré começou a virar para a startup.
Um ano depois de chegar a Portugal e a vários outros mercados, a Juul fechou as portas às subsidiárias. Pelo menos 60 mortes relacionadas com a utilização dos vaporizadores tinham sido reportadas à CDC e os médicos erm confrontados com o surgimento de uma condição específica associada ao seu uso, a que chamaram EVALI.
A Juul deu um passo atrás, mas não se livrou de pesadas repercussões. Ontem, a startup chegou a acordo com o procurador-geral da Carolina do Norte, aceitando pagar 40 milhões de dólares por marketing ilegal e dispondo-se a mudanças radicais para evitar que os seus produtos sejam consumidos por adolescentes. É um acordo histórico, que colocará os vaporizadores ao mesmo nível do tabaco: atrás do balcão, disponíveis apenas a compradores adultos, com grandes restrições a nível publicitário.
Se o desfecho na Carolina do Norte foi este, outros poderão seguir-se em estados como o Colorado, que também tem um caso em tribunal contra a empresa.
Da premissa inicial da Juul pouco ou nada resta. Valeram a pena anos de pesquisa e inovação para se tornarem mais uma marca na indústria do tabaco? Como é que dois visionários passaram da inspiração à jactância gananciosa sem pausar?
A Juul era uma boa ideia que foi abalroada pelo próprio sucesso, e todos perdemos com isso.