Quando a integração de imigrantes não falha: o caso da Associação Setare

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“Integração” é uma das palavras mais repetidas em políticas públicas, relatórios institucionais e conferências internacionais. Fala-se dela com solenidade, preocupação e boas intenções. Mas, na prática, quantos projectos em Portugal conseguem resultados reais, mensuráveis e duradouros? A resposta está nos números - e são desconfortáveis. A taxa de abandono escolar entre jovens migrantes ultrapassa os 20%. Entre mulheres migrantes, mais de metade está desempregada. O risco de pobreza é o dobro do registado na população não migrante. São milhares de vidas suspensas, empurradas para as margens da sociedade, mesmo depois de atravessarem fronteiras.

Agora, confrontemos esses dados com os resultados da Setare, uma associação portuguesa sem fins lucrativos criada em 2023. Resultado? 0% de abandono. 100% de aproveitamento académico. 100% de integração profissional em curso.

A Associação Setare nasceu como resposta direta ao colapso dos direitos das mulheres no Afeganistão, quando o regime talibã fechou as universidades a todas as estudantes. Enquanto o mundo se limitava a condenações formais, um grupo de voluntários decidiu agir. Com poucos meios e uma ideia simples - dar uma oportunidade a mulheres que queriam continuar os seus estudos e as suas carreiras - lançaram um projecto que hoje se afirma como uma referência.

O projeto começou com cinco pessoas: Luís Evangelista, professor do ISEL; Teresa Menezes Cordeiro, socióloga; Tajala Abidi, engenheira afegã recrutada quando ainda estava em Cabul, em 2021, com os talibãs a tomar o poder; Filipe Vasconcelos, fundador da S317 Consulting; e Tiago Pinto Carneiro, gestor. Chamaram-lhe Setare, “estrela” ou “destino”, em persa. Um nome que diz tudo.

Tajala é um dos rostos deste projecto. Chegou a Lisboa em 2021, contratada pela S317 Consulting, ainda a partir de Cabul. Fugiu para recomeçar do zero. Hoje, é consultora da empresa, está a terminar o mestrado no Instituto Superior Técnico e é também gestora de integração da Setare — acompanhando outras jovens no caminho da reconstrução.

A Setare acompanha hoje oito jovens mulheres universitárias afegãs e prepara-se para acolher mais nove. Chegam com diplomas interrompidos e vidas em suspenso. Antes de aterrarem em Lisboa, já foram entrevistadas, enquadradas e preparadas. A Setare trata do alojamento, do acesso ao ensino superior, da mentoria individual e, com os seus parceiros, garante todas as condições para uma integração sólida.

O modelo é simples e brutalmente eficaz: acompanhamento próximo, apoio psicológico, mentoria dedicada, exigência académica, inserção desportiva, cultural e profissional. Nada de caridade. Nada de facilitismo. Estas mulheres são tratadas como o que são: capazes, resilientes, brilhantes.

Chegar a Portugal, disseram-nos algumas, “é como chegar a um planeta diferente”. Mas o que começa por ser estranho, com tempo, paciência e afeto, torna-se familiar. O hijab desaparece. A língua portuguesa surge timidamente. As regras não escritas da nossa sociedade vão sendo interiorizadas. Não se trata de aculturação. Trata-se de integração real — com liberdade, com escolhas, com raízes.

Nenhuma destas jovens desistiu. Algumas já trabalham. Outras estão em estágio. Duas jogam numa equipa local de basquetebol. Duas foram convidadas pela ONU para serem mentoras de jovens refugiadas no Irão. E todas, sem exceção, estão a construir uma vida autónoma em Portugal. Este modelo mostra que é possível e necessário - investir na imigração qualificada. Portugal precisa de talento. Precisa de engenheiras, médicas, economistas, investigadoras. Ignorar ou desperdiçar estas jovens mulheres seria um erro duplo: humano e estratégico.

As empresas têm aqui um papel central. Foi uma empresa de consultoria que teve a coragem de contratar uma engenheira afegã ainda em Cabul. São empresas que hoje recebem estas jovens em estágios e empregos. E serão empresas, mais do que instituições, que garantirão o salto definitivo da integração para a autonomia. A imigração qualificada deve ser uma prioridade nacional e não apenas um tema para conferências sobre demografia.

Este modelo funciona porque é exigente. Porque respeita. Porque entrega. Porque é feito em rede: com universidades, autarquias, empresas, voluntários, psicólogos e famílias. Porque não infantiliza, não assistencializa. Dá ferramentas. Exige responsabilidade.

E, por isso mesmo, é incómodo. Porque demonstra que é possível fazer bem. Porque mostra que a integração verdadeira não precisa de milhões, precisa de vontade. Vontade de fazer com qualidade, com exigência, com estrutura. Vontade de deixar para trás o discurso do “coitadinho que devemos ajudar” e substituí-lo por “cidadãos que queremos incluir”.

Portugal tem todos os ingredientes para replicar este modelo. O que falta é isso mesmo: vontade. Vontade política. Vontade institucional. Vontade empresarial. Vontade de tratar cada pessoa como sujeito da sua história, não como estatística ou símbolo.

A integração não é uma utopia. É uma escolha. A Setare fez essa escolha. E mudou tudo na vida destas jovens que hoje vivem a vida que querem, em liberdade

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