Arábia Saudita acelera plano para dominar mundo do futebol e gaming com compra da EA

Movimentos do Public Investment Fund (PIF) mostram a aposta saudita em diversificar receitas para além do petróleo, com investimentos que vão do futebol aos direitos televisivos e aos videojogos.
Mundial de E-Sports foi disputado em Riade, na Arábia Saudita.
Mundial de E-Sports foi disputado em Riade, na Arábia Saudita.E-Sports World Cup
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Quando atletas como Fabinho, Kanté, Mahrez, Mané e, especialmente, Cristiano Ronaldo e Neymar trocaram o protagonismo das grandes ligas europeias pelo futebol da Arábia Saudita, o governo local dava um recado claro ao mundo: haviam chegado para ser um novo player no ecossistema futebolístico. Desde então, impulsionado pelo Public Investment Fund, popularmente conhecido pela sigla PIF, os sauditas têm mostrado cada vez mais que querem ditar as regras e causar impacto no futebol dentro e fora de campo.

Na última segunda-feira, 29 de setembro, o PIF deu mais uma prova de que os petrodólares chegaram para comandar a forma como a banda toca. O fundo presidido pelo líder saudita Mohamed Bin Salman anunciou que é uma das partes envolvidas na aquisição de uma das mais importantes marcas de gaming do mundo: a poderosa Electronic Arts — também conhecida pela sigla EA — responsável por videojogos que marcaram gerações ao redor do mundo.

The Sims, Battlefield, Medal of Honor, Need for Speed e Mass Effect são alguns exemplos de títulos lançados pela empresa, consolidada como pioneira no mercado do gaming nas últimas décadas — foi fundada em 1982. Isso sem contar, é claro, os populares simuladores desportivos desenvolvidos pela EA, entre eles o UFC (luta), o NBA Live (basquete), o Madden NFL (futebol americano) e... o EA FC (antigo FIFA), o principal game de futebol do mundo, que desde 2013 conta com a Saudi Pro League fielmente representada.

O valor do negócio espantou a audiência: o acordo foi fechado por nada menos que 55 mil milhões de dólares, cerca de 47 mil milhões de euros. Mais do que os números, chamaram atenção os investidores envolvidos: além do PIF, o regresso da EA ao estatuto de empresa privada — estava cotada em bolsa desde 1989 — contou também com a participação da Silver Lake, fundo que controla parte das operações do TikTok nos EUA, e da Affinity Partners, empresa fundada por Jared Kushner, genro de Donald Trump.

Parcerias à parte, a operação dá continuidade aos movimentos feitos fora de campo pelo PIF em investimentos ligados ao futebol como um todo. Ao mesmo tempo em que reforça os principais clubes sauditas (Al Hilal, Al Ittihad, Al Nassr e Al Ahli) com craques de classe mundial — não só os já mencionados, mas também recentemente João Félix, Kingsley Coman, Mateo Retegui e Darwin Núñez — o fundo estreita relações com a FIFA e com entidades e empresas de grande poder no Ocidente.

Um dos exemplos mais claros dessa aproximação com a entidade máxima do futebol ocorreu em junho de 2025.

Diversificar receitas — ou sportswashing

Nas flash interviews do Mundial de Clubes, os atletas concediam entrevistas em frente ao conhecido banner com os patrocinadores do torneio. Entre marcas e entidades, uma sigla chamava atenção: PIF. O motivo para o fundo saudita estar sempre presente durante o torneio — inédito e vencido pelo Chelsea, que bateu o PSG por 3-0 na final — explica-se se voltarmos ao final do ano anterior.

Em dezembro de 2024, a DAZN, empresa de streaming britânica fundada em 2017 com a premissa de tornar-se a "Netflix dos desportos" e que atualmente opera em 200 mercados, adquiriu os direitos de transmissão do novo torneio por 1.000 milhões de dólares. Pouco tempo depois, em fevereiro de 2025, a Surj Sports Investment, unidade de investimentos desportivos do PIF, anunciou a compra de 10% da DAZN pelo mesmo valor.

De acordo com comunicado divulgado à época, a parceria visava "fortalecer a Arábia Saudita como um mercado líder em investimentos desportivos, ao mesmo tempo em que capitaliza o crescimento significativo da demanda por transmissões esportivas de alta qualidade". A aquisição também representou uma tentativa do PIF de colocar a DAZN a competir diretamente com a rival beIN Sports, broadcaster do Catar com forte presença no Médio Oriente.

Nesse intervalo, os sauditas conquistaram uma das vitórias mais desejadas por Mohamed Bin Salman: a de sediar o Mundial de seleções da FIFA em 2034. O Reino foi o único a apresentar candidatura e anunciou investimentos que tornavam quase impossível qualquer concorrência.

Serão cerca de 26 mil milhões de dólares investidos pelo Governo saudita em infraestruturas, incluindo a construção de 15 estádios modernos em cidades como Riade, Jidá, Khobar, Abha e a cidade futurística de Neom, planejada para ser um dos grandes centros turísticos do país.

O interesse saudita no futebol, portanto, revela uma estratégia clara: diversificar as receitas do país para além do petróleo. Atrair turistas é uma das principais missões, e o futebol pode ter papel central nesse objetivo. Não por acaso, Cristiano Ronaldo — no país desde 2022 — é hoje um dos rostos da campanha para atrair 150 milhões de visitantes por ano até 2030.

"Vim pelo futebol, fiquei para descobrir mais" é o mote da ação do governo saudita protagonizada pelo astro português que, de acordo com a revista Forbes, arrecadou 245 milhões de euros entre salários e outros rendimentos na Arábia Saudita. Para diversas ONGs e parte significativa da mídia internacional, no entanto, as campanhas e investimentos do governo saudita no futebol têm outro nome: sportswashing, a tentativa de Bin Salman de melhorar a reputação do país — marcada por denúncias de violações de direitos humanos — através do desporto mais popular do mundo.

E-sports: alvo antigo dos sauditas

Retomando o tema dos videojogos, investir em e-sports não é novidade para os sauditas. Mesmo antes da aquisição junto à Silver Lake e à Affinity Partners, o PIF já detinha 10% da principal empresa do setor. De acordo com a Bloomberg News, o fundo aplicou cerca de 30 mil milhões de dólares na indústria nos últimos anos, promovendo inclusive alguns dos maiores eventos de e-sports do mundo.

O Mundial da modalidade, por exemplo, foi disputado em Riade este ano, reunindo milhares de jogadores e adeptos de diferentes países. Foram ao todo 25 modalidades contempladas — entre elas Counter-Strike, Dota, EA FC e Free Fire — e uma premiação recorde de 70 milhões de dólares. Em 2027, quando entra em vigor o contrato entre EA e PIF anunciado nesta semana, a capital saudita receberá também a primeira edição dos Jogos Olímpicos de E-Sports.

Cristiano Ronaldo representado no EA FC 24 com a camisola do Al Nassr.
Cristiano Ronaldo representado no EA FC 24 com a camisola do Al Nassr.DR

Para reforçar essa aposta, o governo saudita inaugurou em 2024, em Riade, a cidade de Qiddiya, uma arena de 500 mil m² projetada para ser a maior referência mundial em turismo e competições de e-sports. Cabe lembrar ainda que, além da EA, o PIF já detém uma participação minoritária na Nintendo, outra gigante do setor.

Grandes craques na liga doméstica, direitos de transmissão de competições globais e domínio crescente no universo dos videojogos — agora consolidado com a aquisição da EA FC, o principal game de futebol do mundo. Aliás, curiosamente, desde 2024 o jogo já não leva o nome FIFA: após a separação entre a entidade e a Electronic Arts, passou a ser lançado como EAFC.

A julgar pela relação cada vez mais estreita entre Arábia Saudita e a entidade presidida por Gianni Infantino, não seria de estranhar uma reconciliação futura entre EA e FIFA, trazendo de volta o nome pelo qual o jogo foi conhecido por mais de duas décadas. Se os sauditas assim quiserem, o caminho será ainda mais curto.

nuno.tibirica@dn.pt

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