Taxa turística: Para onde estão a ir as receitas? Não-consignação é entrave à transparência

Municípios são pouco claros sobre os investimentos e projetos financiados pela taxa turística. Falta de transparência é um problema, mas o princípio da não-consignação limita a atuação das autarquias.
Taxa turística: Para onde estão a ir as receitas? Não-consignação é entrave à transparência
André Luís Alves
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Injustas, desequilibradas ou pouco transparentes. As críticas à cobrança das taxas turísticas têm-se multiplicado por parte, principalmente, das principais associações representativas do setor, mas não só. Recentemente, também o secretário de Estado do Turismo reiterou o reforço do IVA turístico como alternativa à proliferação das taxas. “Não julgo que [a taxa turística] seja, de facto, o instrumento mais eficaz para a sustentabilidade, para a diminuição da pegada e para o grau de satisfação dos residentes”, apontou. Pedro Machado pediu ainda transparência aos municípios lançando o repto para que expliquem publicamente a finalidade das receitas.

Afinal, de que forma estão as câmaras municipais a gastar este dinheiro? A limpeza e a higiene urbana, o investimento na cultura ou em infraestruturas municipais e património, a mobilidade, a manutenção e reabilitação urbanística, a segurança ou a promoção do destino são algumas das áreas de investimento apontadas pelos vários Executivos Camarários questionados pelo DN. Os municípios defendem a cobrança desta taxa municipal de forma a mitigar os impactos da crescente atividade turística, mas poucos são os que detalham os valores despendidos ou as iniciativas apoiadas com estes fundos.

Na capital, o financiamento de projetos ou atividades com verbas da taxa turística de dormida é gerido pelo Fundo de Desenvolvimento Turístico de Lisboa (FDTL), através de um comité de investimentos cujo objetivo é assegurar a participação dos agentes económicos ligados ao setor. Da lista de investimentos que nasceram com as receitas da taxa, a câmara liderada por Carlos Moedas destaca a Doca da Marinha, a Estação Sul e Sueste, o Museu Tesouro Real ou o Centro Interpretativo da Ponte 25 de Abril. Também a Web Summit é financiada, em parte, através do FDTL que, na última edição de 2024, transferiu sete milhões de euros para a realização da cimeira tecnológica.

Já a câmara de Cascais refere que, no ano passado, investiu mais 100 milhões de euros no concelho e esclarece que a taxa turística não está consignada a investimentos “uma vez que a receita está destinada ao desenvolvimento da Cultura”, adiantando ainda que o montante alocado à promoção turística “é muito superior ao valor cobrado com a taxa”.

No Centro do país, Coimbra detalha que as receitas permitiram, por exemplo, o alargamento do programa de Fim de Ano. Óbidos indica que as verbas reverteram, em 2024, para a compra de contentores móveis de recolha seletiva de resíduos e de sinalética vertical para as estradas do concelho.

Viana do Castelo, que é este ano Capital da Cultura do Eixo Atlântico, irá reforçar a oferta cultural.

No Algarve, Vila Real de Santo António gastou 500 mil euros na requalificação da Pista de Atletismo do Complexo Desportivo. O apoio a eventos como o Festival Histórico Vila Real de Santo António Setecentista ou a prova desportiva Monte Gordo Sand Race foram outras das finalidades destas receitas provenientes da tributação das dormidas. Lagoa opta, este ano, por dinamizar atividades como o Campeonato da Europa de Corta Mato, a realizar em dezembro.

Já a câmara municipal do Porto responde que as receitas reforçam o Orçamento Municipal, uma vez que não são consignáveis.

Princípio da não-consignação é entrave à transparência

O entrave à transparência no que respeita à prestações de contas dos municípios surge na própria lei. O Regime Financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais define o princípio da não-consignação, que proíbe a vinculação de receitas a despesas específicas, ou seja, estas não podem ser destinadas exclusivamente a um fim ou a uma despesa previamente definida.

“Os municípios recolhem esta taxa, mas depois têm de a colocar no Orçamento Geral. Há, de facto, uma falta de clareza na afetação das receitas e não existe uma avaliação do impacto e da eficiência da medida. Os relatórios das autarquias não discriminam que projetos ou ações foram especificamente financiadas com estas verbas, mas isto decorre da limitação que a própria lei impõe”, explica a coordenadora do mestrado em Administração Autárquica do Instituto Politécnico de Bragança, Cláudia Costa.

Para a especialista, este é um dos principais desafios no debate da taxa turística e, neste sentido, uma das vias para a clarificação, defende, seria a revisão da legislação.

O artigo que determina a não-consignação, referente à Lei n.º 73/2013, prevê algumas exceções, por exemplo, no caso de receitas provenientes de fundos comunitários ou do Fundo Social Municipal. “Uma solução seria incluir uma nova alínea nas exceções, de forma a que as receitas provenientes das taxas turísticas não obedecessem também ao princípio da não-consignação”, sugere.

Ainda assim, e apesar deste constrangimento, a investigadora acredita que seria uma boa-prática que os municípios elaborassem relatórios sobre a taxa envolvendo, à semelhança de Lisboa, os principais stakeholders do setor.

“Embora de um lado tenhamos o princípio da não-consignação, do outro existe esta facilidade de ligar o investimento à área turística. Seria muito mais claro haver um relatório detalhado e acessível, onde ficasse claro que valores foram arrecadados e que iniciativas foram financiadas, de forma a tornar mais claro este processo”, propõe.

A também autora do artigo Local Tourist Taxes in Portugal: A systematic review of municipal regulations assume a importância destas receitas nos Orçamentos Locais face ao baixo nível de independência financeira dos municípios portugueses que, no ano passado, se fixou em 35,7%. Ou seja, a maioria das câmaras municipais do país está dependente das transferências do Orçamento do Estado. “As taxas turísticas são um mecanismo fácil para arranjar dinheiro, isso é claro. Acabam por ser uma fonte de receita extra, que os municípios facilmente conseguem aplicar, com o argumento de que está relacionada com o turismo, mas que lhes permite ter uma margem para gerir o dia a dia”, nota.

Já o professor e investigador da Universidade de Aveiro, Pedro Camões, relativiza o debate em torno da temática. “Não vejo, francamente, que exista um problema especial com a taxa turística. O problema da falta de transparência é transversal a todo setor público em Portugal, onde há problemas de transparência gritantes”, frisa.

O também membro da Unidade de Investigação em Governação, Competitividade e Políticas Públicas (Govcopp) considera que, “do ponto de vista das receitas, esta taxa é pouco relevante para os municípios” e relembra que o impacto da taxa municipal turística nas receitas totais cobradas pelas autarquias em 2023 foi de, apenas, 2,7%, de acordo com os dados do último Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses.

“Este assunto só tem algum destaque mediático porque, evidentemente, é muito importante em Lisboa e no Porto, mas sobretudo em Lisboa”. Sobre uma eventual revisão do Regime das Autarquias Locais, é perentório a discordar. “Sou absolutamente contra alterações por causa de um assunto que se tornou importante durante meia dúzia de dias. Pode ser importante, sim, olhar para o regime financeiro dos municípios, mas não para alterar questões pontuais como a taxa turística”, afirma.

Valor cobrado é inferior ao impacto da visita do turista

O valor das taxas turísticas cobradas aos hóspedes que pernoitam num alojamento turístico varia entre um e quatro euros, montante que Cláudia Costa considera insuficiente para fazer face às despesas das autarquias. “Apesar de as pessoas acharem que o valor é muito alto, em bom rigor, não consegue suportar o real custo da atividade turística do município, que é muito mais caro do que o valor cobrado ao turista”, elucida.

Face a este cenário, a investigadora defende a implementação de um sistema de contabilidade de gestão que permita “o efetivo cálculo de quanto custa realmente a presença de um turista numa determinada região”.

Questionada sobre se a taxa pode ter impacto na procura do destino, a professora discorda. “As taxas poderiam ser um travão se os valores fossem mais proibitivos. Pagar por uma estada, por exemplo, mais oito euros não é significativo no orçamento de quem vai viajar. Para limitar ou diminuir o número de visitantes seria preciso pensar noutro tipo de instrumento”, conclui.

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AHP quer transparência e regulamentação

A Associação da Hotelaria de Portugal (AHP) assume-se “preocupada com a banalização” das taxas turísticas e com a sua generalização em municípios que não enfrentem pressão turística.

“Esta medida deve ser avaliada com cautela. Se a taxa for aplicada, deve ser acompanhada de total transparência na sua gestão e garantir que os fundos arrecadados são reinvestidos no setor”, defende Cristina Siza Vieira. A vice-presidente executiva da associação alerta que as taxas representam um encargo adicional, podendo comprometer a competitividade da atividade, especialmente em mercados mais sensíveis ao preço.

Relembra ainda que, muitas vezes, os hotéis baixam preços para acomodar o valor da taxa. “Defendemos a uniformização e regulamentação clara da aplicação da taxa turística a nível nacional, evitando disparidades significativas entre municípios e desenhando um quadro específico com a fundamentação para a criação e fins deste tributo. Acreditamos que uma maior transparência na utilização das verbas é essencial para justificar a cobrança junto de turistas e de operadores”, indica.

Para a ALEP a taxa é um “entrave sem sentido”

“A taxa turística traz uma enorme carga de trabalho adicional e custos para o Alojamento Local, composto por empresários em nome individual e microempresas. Além disso, em segmentos específicos como o dos hostels pode mesmo ter impacto na perda de clientes”, lamenta o presidente da Associação do Alojamento Local em Portugal (ALEP).

Eduardo Miranda acusa ainda as câmaras municipais sem atividade turística relevante de estarem a adotar a taxa “criando apenas um entrave sem sentido”. “Por outro lado, nos municípios onde a atividade turística é relevante e cresceu não se vê o retorno do uso das verbas arrecadadas, que, em alguns, são muito significativas, como em Lisboa e Porto”, garante.

O representante do AL no país pede, em primeiro lugar, “bom senso às câmaras”. Às autarquias solicita ainda transparência na comunicação dos investimentos e da aplicação das receitas, bem como o envolvimento do setor na tomada de decisões. “Nos municípios de maior relevância turística, parte da taxa deveria reverter para projetos de iniciativa das comunidades locais onde o turismo tem mais intensidade”, sugere.

AHRESP aponta Lisboa como bom exemplo

Os custos da aplicação da taxa turística superam os seus benefícios. Esta é a posição da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) que recorda já existirem outros mecanismos de financiamento das autarquias com o contributo do turismo, como é exemplo o IVA turístico.

A associação contesta o facto de não existir uma regulamentação uniforme, considerando que o facto de cada autarquia definir as suas próprias regras gera “uma fragmentação desordenada”. “Defendemos a criação de comités de investimento da taxa turística, seguindo o exemplo positivo da Câmara Municipal de Lisboa, onde as entidades representativas dos empresários podem participar ativamente nas decisões”, explica Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP.

De forma a limitar os impactos negativos da taxa turística nos empresários e turistas, a representante sugere três medidas: limitar a cobrança da taxa a um máximo de três noites por estadia; uniformizar o valor a um euro por noite, para promover equilíbrio e evitar disparidades entre regiões, e aplicar a taxa apenas durante a época alta.

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