Mal se dá por ele na estação de Santiago de Compostela. São 21 horas e 50 minutos. Vindo de Madrid com 20 minutos de atraso, o comboio Avril entra quase silenciosamente na plataforma. Parece mais uma automotora para a alta velocidade da Renfe, a empresa pública ferroviária espanhola. Mas nunca houve um comboio que estivesse tão preparado para circular nos carris portugueses. .Antes de chegar a Santiago de Compostela, o comboio da série 106 da Renfe já tinha mudado de bitola em andamento no cambiador de Taboadela - não muito longe de Ourense - e já tinha circulado a 300 km/h nos carris à distância padrão e, mais adiante, à medida ibérica. É a primeira vez que um comboio consegue circular a tamanha velocidade na bitola utilizada nos caminhos de ferro portugueses, graças à tecnologia desenvolvida pela fabricante espanhola Talgo..Os passageiros começaram a usar o Avril dia 21 de maio. As primeiras viagens têm sido problemáticas. Também não escapámos a várias peripécias. Quando entrámos no comboio, as portas fecharam-se quando havia passageiros por sair e que transportavam malas de viagem bastante grandes. Como o piso do comboio está ao nível da plataforma, seria mais rápido o embarque e saída de viajantes e a vida ficaria muito facilitada para pessoas em cadeira de rodas ou com menos mobilidade. Só que as portas bloquearam. .Foi necessário reiniciar tudo .O comboio ficou praticamente às escuras. Só havia umas ténues luzes de emergência e das máquinas de venda de sanduíches e de bebidas, colocadas a cada duas das 12 carruagens. Acumulámos mais 10 minutos de atraso. Antes de Ourense, a viagem já contava com 20 minutos de atraso porque já tinha havido um problema com o fornecimento de eletricidade ao comboio, a cargo do gestor da rede ferroviária, segundo informação enviada por e-mail pela Renfe..Saímos de Santiago de Compostela e sentámo-nos no assento que estava no meio de três lugares. Não, não é conversa de avião. É mesmo de comboio Avril: outra das inovações deste comboio de alta velocidade é a configuração de lugares 3+2, isto é, uma fila com três lugares, corredor, e uma fila com dois lugares. Num comboio tão veloz nunca ninguém ousara organizar os passageiros desta forma. Em Portugal, este tipo de colocação existe, por exemplo, nos comboios regionais elétricos (série 2240 da CP). .A configuração 3+2 reduz o espaço de circulação no corredor e torna os lugares um pouco mais apertados do que num comboio de alta velocidade comum. Ainda assim, há mais largura do que num avião. Ainda nos lugares, não faltam tomadas elétricas, dá para subir os encostos e ajustá-los ao formato da nossa cabeça. Os assentos são um pouco mais rijos do que é costume. Ficámos nos lugares para grupos de seis e a mesa comportava um computador portátil em toda a sua largura. Se fosse um lugar normal, um pouco do portátil tinha ficado de fora..A opção do fabricante espanhol permite que um Avril normal, com um só piso e 200 metros de comprimento, consiga comportar 519 passageiros numa só unidade, superando os concorrentes franceses da SNCF, mesmo nos modelos com dois andares. Haverá ainda o Avril para o serviço de baixo custo da Renfe (Avlo), que poderá transportar 581 - à conta de não haver uma carruagem bar. .No Avril, a carruagem bar também é bastante diferente do habitual: há vitrinas com sanduíches, refeições leves, bebidas, máquinas de café e ainda vários funcionários prontos para aquecer comida se for preciso. Há uma máquina para o passageiro fazer os pedidos de forma autónoma, como se estivesse num restaurante de comida rápida..“É uma pena. Isto é uma oportunidade perdida”, desabafa uma passageira assim que voltamos ao nosso lugar. Perguntámos-lhe como se liga o pequeno monitor instalado em todos os lugares mas indica-nos que desde Madrid que os ecrãs não funcionam. A partir deles seria possível aceder à plataforma Play, com filmes e séries. Terá de ficar para uma próxima..Entretanto, atingimos os 200 km/h e notam-se mais vibrações a esta velocidade no Avril do que em outros comboios AVE ao serviço da Renfe. Não é impeditivo para ler ou olhar para o computador portátil. Mas a maior velocidade não têm faltado reclamações sobre a movimentação do comboio, algo que não se verifica habitualmente. Resta saber se serão meros problemas de juventude deste comboio ou se isto se deve ao facto de as caixas do comboio estarem ao nível da plataforma..Ir de Portugal e experimentar o Avril em Espanha no mesmo dia obriga a logística e paciência. Para Madrid, o comboio sai da estação de Vigo-Urzaiz pelas 9 horas e 28 minutos. Quem for do Porto, por exemplo, tem de apanhar o autocarro que sai às 2.30 de Campanhã e aguardar quase quatro horas no terminal intermodal de Vigo, que está mesmo junto à estação ferroviária. No caminho inverso, o Avril parte de Madrid-Chamartín pelas 19.18 e chega a Vigo pelas 23.36. Sobram cerca de 20 minutos para apanhar o último autocarro para o Porto (com paragem em Braga)..Para não haver percalços, é preciso que o comboio chegue mesmo a horas. No AVE, um atraso de 15 a 30 minutos dá direito à devolução de metade do bilhete; atrasos de mais de meia hora tornam a viagem grátis. Um compromisso de pontualidade que tem sistematicamente penalizado a Renfe: a primeira viagem do comboio Avril atrasou mais de duas horas e frustrou muitos passageiros. .Como chegámos a Vigo com mais de 20 minutos de atraso, pedimos o reembolso de metade do bilhete 24 horas depois da viagem. O sistema é simples e podemos pedir para receber o montante no cartão com que comprámos o ingresso ou então acumular pontos para próximas viagens - a Renfe tem um cartão de fidelização. Em dois dias, ficou tudo resolvido através do portal da empresa ferroviária..No entanto, há novas regras para quem comprar bilhete a partir de 1 de julho: a Renfe irá devolver metade do bilhete caso o atraso seja igual ou superior a uma hora; o reembolso integral apenas irá ocorrer se o atraso for igual ou superior a hora e meia..O tempo de viagem de mais de quatro horas entre Vigo e Madrid deve-se à passagem do Avril por Santiago de Compostela. O Alvia (que está limitado aos 220 km/h em bitola ibérica), segue de Ourense para Vigo bem junto ao rio Minho do lado espanhol. Espera-se que a deslocação encurte para as três horas e 35 minutos ainda neste ano, com o reforço da frota do Avril. A próxima redução mais expressiva do tempo de viagem, para as três horas, está apontada para 2032, quando a estação de Vigo-Urzaiz deixar de ser terminal e permita também receber os comboios provenientes da nova linha Porto-Vigo. .Muito antes disso, espera-se que o novo comboio de alta velocidade deixe de dar problemas. Os últimos bilhetes para este serviço chegam a ser vendidos por mais de 100 euros - assim funciona a tarifa dinâmica ferroviária.